Poética de resíduos
Pesquisas vão além dos aspectos testemunhais da
obra de Carolina Maria de Jesus e buscam definir seu estilo e seus parentescos
culturais
MÁRCIO FERRARI | ED. 231 | MAIO 2015
Carolina em foto
de junho de 1960 na janela de um barraco, em São
Paulo: produção literária e vida de altos e baixos
continuam sendo estudadas
Cinquenta e cinco anos depois
de Quarto de despejo, estreia em livro da escritora Carolina Maria
de Jesus, o interesse por sua obra continua se desdobrando e tomou impulso em
2014, ano de seu centenário de nascimento – presumido, porque a própria
Carolina não tinha certeza sobre a data e há discrepâncias de dados entre sua
certidão de nascimento e a de batismo. Definida como “favelada” no subtítulo do
livro (Diário de uma favelada), Carolina hoje é revisitada sob diversos
ângulos, dada a riqueza de sua produção inédita, ou quase, e de sua vida de
altos e baixos.
Carolina em foto
de junho de 1960 na janela de um barraco, em São
Paulo: produção literária e vida de altos e baixos
continuam sendo estudadas
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“Escritora, lavradora, catadora de
papel, compositora, sambista, poetisa, dramaturga, cantora, atriz circense,
raizeira [quem usa raízes em tratamento médico]”, assim a descreve a
historiadora Elena Pajaro Peres em sua tese de doutorado Exuberância e
invisibilidade. Populações moventes e cultura em São Paulo, 1942 ao início dos
anos 70, defendida em 2007 no Departamento de História da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).
Elena desenvolve agora no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP
pesquisa de pós-doutorado sobre a diáspora africana nos manuscritos de
Carolina.
A presença de Carolina (1914-1977) em
círculos acadêmicos no Brasil e no exterior contrasta com o quase total
desconhecimento de seu nome pelo público leitor. A sua época, entretanto, Quarto
de despejo foi um fenômeno de vendas. A primeira tiragem, de 10 mil
exemplares, se esgotou em três dias, outros 90 mil foram vendidos em seis
meses. No exterior, ganhou tradução em 14 idiomas. A publicação do livro
aconteceu depois de uma reportagem do jornalista Audálio Dantas na favela do
Canindé, uma das primeiras de São Paulo. Um encontro casual com Carolina o
levou a conhecer os escritos – contidos em cerca de 20 cadernos – que
selecionou e editou, alterando a pontuação, mas mantendo a ortografia e a
gramática originais. Carolina, que estudou apenas até o 2º ano do então chamado
curso primário em sua cidade natal, Sacramento, em Minas Gerais, sempre havia
confiado no potencial de publicação do que escrevia. Trechos de seus cadernos
já tinham saído em reportagens de jornais, entre elas a de Audálio Dantas,
publicada em 1958 na Folha da Noite. Dois anos depois sairia Quarto
de despejo, já com expectativa de público.
Carolina publicaria ainda três livros
em vida, com repercussão incomparavelmente menor do que a obra que a celebrizou,
e deixou guardados “mais de 5 mil páginas manuscritas, totalizando 58 cadernos
que contêm sete romances, mais de 60 textos com características de crônicas,
fábulas, autobiografia e contos, mais de 100 poemas, quatro peças de teatro e
12 marchinhas de Carnaval”, segundo levantamento feito pela doutoranda
Raffaella Fernandez, que atualmente trabalha na pesquisa Narrativas de Carolina
Maria de Jesus: Processo de criação de uma poética de resíduos, no
Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas
(Unicamp).
Parte de conto
publicado postumamente, em 2014, e disponível on-line
Todo esse material se encontra
espalhado, e novos manuscritos podem aparecer. “Sempre que se trabalha com
pessoas em movimento, tem-se que lidar com a dispersão dos documentos”, diz
Elena. “Carolina entregou muitos escritos a outras pessoas, na esperança de
publicá-los, e, em suas constantes mudanças, foi obrigada a deixar para trás
alguns livros que colecionava com carinho.” Mesmo suas obras publicadas são
difíceis de encontrar. Elena Peres pôde consultar os microfilmes de seus
manuscritos na Biblioteca do Congresso em Washington, que guarda também uma
cópia de todos os livros de Carolina, inclusive o romance Pedaços da
fome, de 1963, e seu único disco, gravado pela RCA Victor. Os mesmos
microfilmes também estão disponíveis na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro,
mas no catálogo da BN não constam todos os seus livros.
Foi nos livros Provérbios e Diário
de Bitita – memórias de infância da escritora, publicadas inicialmente
na França, em 1982, e quatro anos depois no Brasil – que a pesquisadora tem encontrado
os principais vínculos entre Carolina e a cultura da diáspora africana no
continente americano. “Consegue-se perceber conexões com tradições africanas
que davam muita importância à palavra escrita”, diz Elena. A historiadora
identifica em particular um elo com a cultura de Cabinda, hoje província de
Angola, que liga a escritora à África Central. Seu avô, a quem ouvia com
devoção quando criança, era ex-escravo e seus pais vinham dessa região de
cultura banto, onde o exercício da formação moral e da busca do caminho reto
era feito por meio de diálogos e provérbios, muitas vezes pictografados em
tecidos e cerâmicas.
Parte de conto
publicado postumamente, em 2014, e disponível on-line
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Elena, que esteve por 12 meses em
estágio de pós-doutorado no African American Studies da Boston University e que
vem dialogando com africanistas e estudiosos das diásporas africanas, relaciona
essa preocupação quanto à firmeza de caráter com a tradição musical
afro-norte-americana do spirituals. “Como os provérbios, os spirituals comunicam
o caminho a ser seguido e lamentam os seus desvios, recriando uma ética
religiosa e política que foi constantemente retomada nos discursos em prol dos
direitos civis, especialmente nas décadas de 1950 e 1960”, explica Elena. O avô
de Carolina era cristão e comandava a reza do terço em Sacramento, o que lhe
conferia autoridade moral e proeminência na comunidade.
Quando foram lançados Quarto
de despejo, Casa de alvenaria (memórias de sua vida depois do sucesso
do primeiro livro) ouAntologia pessoal (reunião de poemas
organizada pelo historiador José Carlos Bom Meihy, publicada em 1996),
costumava-se criticar a escritora por não refletir sobre sua condição de mulher
e negra. No entanto, textos sobre esses assuntos encontram-se espalhados pelos
inéditos e mesmo em passagens publicadas que não foram suficientemente levadas
em conta na época. A doutoranda Raffaella destaca poemas e outras passagens dos
escritos de Carolina que formam um conjunto ambíguo sobre essas questões – ora
a autora incorpora preconceitos, ora reivindica a emancipação de negros e
mulheres. Na vida, a escritora sempre se manteve tão independente quanto pôde.
Preferiu ser catadora de papel a empregada doméstica e nunca quis se casar –
teve três filhos de pais diferentes.
Para Elena, a noção de pertencimento
à cultura negra se alimentou também do abolicionismo dos poetas românticos
brasileiros e das ideias de intelectuais como Rui Barbosa e José do Patrocínio,
aos quais Carolina teve acesso por influência de um oficial de Justiça mulato
de Sacramento, que lia trechos de jornais para os negros da cidade que não
sabiam ler. Nos exíguos dois anos em que estudou numa escola espírita, Carolina
tomou gosto pela leitura, e o primeiro livro que leu inteiro, emprestado por
uma vizinha, foi A escrava Isaura, do romântico Bernardo Guimarães.
Dali para frente, continuou lendo tudo o que lhe caía nas mãos, entre livros
achados ou recebidos em doação, o que formou um repertório de referência muito
particular. “Os escritos de Carolina têm trechos poéticos de um grande
refinamento e que não correspondem exatamente à literatura do período em que
foram produzidos”, diz Elena.
Quando se mudou para São Paulo, em
1937, sozinha, deixando para trás família e livros, Carolina passou a escrever
furiosamente. Pelos relatos que deixou, sabe-se que sua cabeça era inundada por
“pensamentos poéticos”. Uma de suas anotações diz: “Sentia ideias que eu
desconhecia”. Para Elena, esse despertar inesperado dá continuidade a uma
espécie de missão de procura da sabedoria incutida por seu avô e impregnada de
uma cultura ancestral. “Talvez ela não houvesse vindo para São Paulo se não
sentisse essa necessidade”, diz a pesquisadora. “Na cidade grande, Carolina se
isolou e encontrou a literatura.” Com isso, conjugou uma voz própria com a
vivência que trazia do entorno. De acordo com Elena, a expressão “quarto de
despejo”, numa metáfora da escritora, refere-se à favela como um lugar em que a
sociedade “guarda” o que não quer mostrar na sala de visitas.
O livro de estreia da autora foi
recebido como um relato testemunhal da vida na favela e, segundo Elena, no
exterior continua residindo aí o interesse principal despertado pela escritora.
O impacto e o incômodo imediatos causados pelo livro foi tanto que logo a
prefeitura de São Paulo, na gestão do prefeito Prestes Maia (1961-65), começou
uma campanha bem-sucedida de derrubada da favela do Canindé, o que resultou na
remoção forçada dos moradores. Essa ação da prefeitura incentivou um grupo de
estudantes a criar o Movimento Universitário do Desfavelamento (MUD), que, com
a ajuda de grandes empresas, atuou na remoção de outras favelas.
A doutoranda Raffaella defende um
deslocamento de abordagem que se detenha nos aspectos propriamente literários
da obra de Carolina – um terreno em que mesmo o aspecto informativo dos
escritos pode ser relativizado. “O universo ficcional está sempre muito
presente”, diz, por sua vez, Elena Peres. “Há memória na ficção e ficção no
testemunho, como também ocorre em outros autores.” A pesquisadora defende
também a superação dos limites da literatura “de periferia, marginal” a que
Carolina é frequentemente circunscrita. “Isso é importante, mas ficaríamos
apenas com a visão do lugar e da época em que viveu após deixar sua família”,
diz, ao se referir às redes transnacionais que vem traçando a partir da obra da
autora.
“Como escritora, Carolina está além
das determinações imediatas”, ressalta Raffaella, que organizou e promoveu a
publicação do livro Onde estaes felicidade?, com dois contos
inéditos da autora, em 2014 (disponível em www.letraria.net), e agora prepara a
edição de um livro infantil e outro infantojuvenil. Em seu trabalho acadêmico,
ela define a produção de Carolina como uma “poética de resíduos”, na qual se
misturam discursos e gêneros literários e não literários, dos poemas românticos
aos textos jornalísticos, das letras de sambas à radionovela e da norma culta à
oralidade, à qual se incorpora um sotaque mineiro. Esse grande amálgama leva
Raffaella a aproximar a atividade de catadora de papel à de escritora. “A
literatura de Carolina também sobrevive de uma catação de discursos”, conclui.
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