Após 60
anos de Grande Sertão: Veredas, distrito mineiro respira Guimarães Rosa
- 18/07/2016 15h33
- Andrequicé (MG)
Léo
Rodrigues – Enviado Especial
Frases de Guimarães Rosa tomam as ruas de
Andrequicé (MG) Léo Rodrigues/Agência Brasil
Do Cine Manuelzão, passando pelo
restaurante Veredas até a Praça Uma Estória de Amor, a obra de Guimarães Rosa
(1908-1967) preenche cada esquina de Andrequicé. No pequeno distrito do
município de Três Marias (MG), a 280 quilômetros de Belo Horizonte, mesmo
aqueles que nunca leram Grande Sertão: Veredas sabem relatar algum
detalhe da aventura entre Riobaldo e Diadorim. Sobre Manuelzão, o protagonista
de Uma Estória de Amor, contam muito além do que diz a literatura
roseana. É que justamente em Andrequicé viveu Manuel Nardi, o Manuelzão de
carne e osso, inspirador de um dos personagens mais famosos do universo de
Guimarães Rosa.
A diversidade cultural do
distrito foi apresentada na XV Semana Cultural Festa de Manuelzão. Ao longo de
oito dias, shows, filmes, quadrilha, contação de histórias, teatro,
dança de ciganos, folia de reis, cavalgada e cortejo de carros de boi
ilustraram a riqueza do sertão eternizado por Guimarães Rosa. Uma visita a
locais citados pelo escritor levou os presentes a se sentir nas páginas dos
livros. Duas jovens encenaram, às margens do rio De-janeiro, o primeiro
encontro entre Riobaldo e Diadorim. A festa terminou nesse domingo (17).
A história de Guimarães Rosa com
o sertão mineiro tem na boiada de 1952 um de seus mais importantes marcos. O
escritor decidiu reunir um grupo de vaqueiros para realizar um percurso de 240
quilômetros em 10 dias, da Fazenda Sirga, a 60 quilômetros de Andrequicé, até
Araçaí (MG), município vizinho a Cordisburgo (MG). Ao longo do trajeto, o
escritor fez anotações sobre lugares e pessoas. É dessa realidade que Guimarães
Rosa vai extrair a matéria-prima para lançar, há exatos 60 anos, Grande
Sertão: Veredas e Corpo de Baile, que posteriormente seria
desmembrado em três volumes: Manuelzão e Miguilim, No Urubuquaquá,
no Pinhém e Noites do Sertão.
A boiada também permitiu a Guimarães
Rosa observar atentamente o linguajar sertanejo. "Ele anotou muitos
termos, muitos 'causos' e muitos vocábulos sertanejos que vão ganhar vida na
sua literatura. É através dessa linguagem que ele vai apresentar para o Brasil
um país ainda desconhecido de si mesmo", analisa Telma Borges, professora
de literatura da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes).
O texto de Guimarães Rosa mostra
uma forma peculiar de escrita, recheada de recursos linguísticos, que faz com
que muitos leitores considerem a leitura difícil. Segundo Telma, ele criou uma
linguagem original, mas com correspondência na linguagem sertaneja. A
professora explica que o escritor mineiro usa a gramática, mas não a normativa
e tradicional. "Ele desloca os termos da oração e se sente um
estranhamento. O leitor tropeça nas palavras. É mais fácil entender o texto
lendo devagar, voltando atrás para recuperar o sentido das frases, ou lendo em
voz alta. Daí é interessante como a leitura em voz alta produz uma significação
muito mais acelerada. A literatura de Guimarães Rosa tem uma marca de
oralidade, que permite a identificação com o sertanejo".
Ao longo do evento, Telma
conduziu alguns passeios e ministrou oficinas para alunos do ensino
fundamental. Ela destaca o conhecimento que as crianças já têm de Guimarães
Rosa. "Eles preparam ao longo de todo o ano atividades para a Semana
Cultural, como teatro e contação de história. É muito explícito como a formação
dessas crianças se dá a partir da literatura e sobretudo sobre a literatura de
Guimarães Rosa", diz.
Crianças de Andrequicé (MG) se envolvem com a literatura
de Guimarães Rosa o ano inteiroLeonardo Alvares/Samarra
Linguagem complexa
No distrito de 400 casas e 2 mil
habitantes, o gosto pela literatura foi calejado pelo tempo. "Eu nunca
gostei muito de ler. No meu tempo, as escolas faziam uma pressão muito grande
pela leitura e acho que criei uma aversão. Não era prazeroso, era obrigado.
Depois de muito tempo, começaram a organizar as rodas de leitura. A cada 15
dias, nos reunimos por duas horas para ler trechos de Grande Sertão: Veredas.
Decidi ir a primeira vez por curiosidade e tomei gosto. É legal porque é uma
linguagem complexa, mas lendo em grupo, fica mais fácil entender", conta a
moradora Maria Borges de Souza.
Esta linguagem complexa e
particular atrai também o interesse de estrangeiros, e a obra tem dezenas de
traduções. Com a cultura de quem dominava seis idiomas e tinha algum
conhecimento em pelo menos outros cinco, Guimarães Rosa foi bem duro com
algumas versões, como a inglesa de 1963. "Não viram, principalmente, que o
livro é tanto um romance, quanto um poema grande, também. É poesia ou pretende
ser, pelo menos", escreve ele em uma carta datada de 17 de junho de 1963.
Presente na XV Semana Cultural
Festa de Manuelzão, o alemão radicado no Brasil Berthold Zilly anunciou que irá
encarar o desafio de fazer uma nova tradução de Grande Sertão: Veredas.
Professor e crítico literário, seu objetivo é justamente oferecer um relato
mais fiel à linguagem de Guimarães Rosa. A única versão alemã da obra, lançada
em 1964, narra os acontecimentos sem transmitir a originalidade da escrita do
autor mineiro.
A linguagem de Guimarães Rosa
também foi levada para as telas. Grande Sertão: Veredas virou uma série
produzida pela Rede Globo em 1985, dirigido por Walter Avancini e com a atuação
de Tony Ramos, Tarcísio Meira e Bruna Lombardi. A cena de abertura foi rodada
em Andrequicé, às margens do rio De-janeiro. Mais tarde, o distrito foi
novamente palco de uma grande produção: o filme Mutum, dirigido pela
cineasta Sandra Kogut. Única película brasileira selecionada para o Festival de
Cannes de 2007, a obra adapta o conto Campo Geral presente no livro Manuelzão
e Miguilim. O conto apresenta a história de Miguilim, um garoto pobre que
vivencia alguns eventos trágicos na infância até que desenvolve uma amizade com
um médico e é levado para estudar na cidade.
O jornalista Pedro Fonseca, que
recebeu uma comitiva da equipe de produção, lembra que alguns defenderam que o
filme fosse rodado no estado de Goiás, argumentando que o sertão mineiro não
seria mais o mesmo retratado por Guimarães Rosa. Ele levou-os para uma passeio,
inclusive a pontos citados pelo escritor, o que teria convencido a produção.
Mesmo assim, o jornalista lamenta a falta de preservação do meio ambiente.
"Os eucaliptos tomaram a paisagem. Para mim, está provado que a falta de
água na região se deve ao eucalipto. Não chove. Andrequicé está com problemas
de abastecimento. As veredas estão secas e devastadas. Dá uma tristeza muito
grande e um sentimento de impotência", lamenta.
60 anos de Grande Sertão: Veredas
O evento é organizado pela
Sociedade dos Amigos do Memorial Manuelzão e de Revitalizacão de Andrequicé
(Samarra) e conta com o apoio do Ministério da Cultura. Nesta edição, a festa
celebrou seus 15 anos e lembrou os 60 anos dos livros Grande: Sertão Veredas
e de Manuelzão e Miguilim, que reúne os contos Uma Estória de Amor
e Campo Geral. O aniversário das obras lançadas em 1956 é motivo para um
sertão em festa. A data foi também celebrada na semana passada durante o
FestiVelhas 2016, em Morro da Garça (MG), e na 28ª Semana Roseana, em
Cordisburgo (MG), cidade natal do escritor.
Segundo o presidente da Samarra,
José Antônio Vicente de Souza, a festa coroa o engajamento da cidade em torno
da preservação da obra de Guimarães Rosa e do legado de Manuelzão. "A
gente percebia que o distrito precisava de cuidados, ao mesmo tempo que
tínhamos o desejo de preservar a história de Manuelzão. Daí surge a Samarra.
Para revitalizar o Andrequicé através da cultura. Olha que legal, não é uma coisa
bacana?", explica José Antônio, que é também sobrinho da ex-mulher de
Manuelzão.
A Samarra conta cada vez com mais
instrumentos para estimular o mergulho na literatura roseana. Durante o evento,
o Memorial Manuelzão, sediado na casa onde morou Manuel Nardi, ganhou um
reforço: o Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo
(IEB/USP) entregou ao memorial uma versão digital das cadernetas de Guimarães
Rosa. Elas contêm as anotações que serviram de base para a publicação de Grande
Sertão: Veredas.
Meninas de Andrequicé (MG) desfilam com as roupas
inspiradas no romance de Riobaldo e DiadorimLeonardo Alvares/Samarra
Um dos pontos altos da XV Semana Cultural Festa de
Manuelzão foi o desfile das roupas produzidas pelas bordadeiras de Andrequicé.
O grupo, que foi formado na primeira edição do evento com o apoio de Furnas, faz
reuniões semanais. Até então, elas trabalhavam em painéis, capas de almofadas e
colchas, sempre inspiradas em frases extraídas da obra de Guimarães Rosa. Para
produzir as roupas, elas realizaram encontros desde o início do ano onde
receberam orientação do designer de moda Marcos Pessoa Morais, de Belo
Horizonte.
Márcia Alves, de 56 anos, é dona de um bar em
Andrequicé e integra o grupo. "Bordo nas horinhas de descuido, como dizia
Guimarães Rosa", se diverte. "Cada dia que eu bordo uma frase de
Guimarães Rosa, eu me sinto na faculdade. Acho que estou aprendendo mais",
acrescenta. Ela conta que a coleção de roupas apresentada foi toda inspirada no
romance de Riobaldo e Diadorim e se emociona com o resultado. "Não pensava
nunca que iríamos chegar nesse patamar".
Edição: Carolina
Pimentel
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